Joaquim Miranda Sarmento: As perspetivas orçamentais desta crise

27 de abril de 2020
PSD

Na semana passada, analisei aqui os números da projeção do FMI para a economia portuguesa para 2020 e 2021, já num cenário de crise Covid-19. Como referi, estes números devem ser analisados com cuidado. Isto porque tendo sido as projeções divulgadas a 14 de abril, isso significa que foram feitas com base em dados e informação de meados/finais de março. Portanto, é uma projeção com base em dados da fase inicial da pandemia. Os números do FMI, que são muito negativos para a economia em 2020 (uma quebra do PIB de 8% e um défice orçamental de 7%), prevêem, contudo, uma recuperação rápida em 2021, com um crescimento de 5% e um défice de 2%.
No artigo da semana passada, salientei quatro aspetos. Primeiro, se de facto a economia cair 8% este ano, mas recuperar 5% em 2021, então os efeitos desta crise não serão tão negativos como se poderia esperar. Segundo, esta previsão, porém, afigura-se otimista, dada a interrupção da atividade económica por um período longo que terá um impacto negativo em setores vitais da nossa economia, como é o caso do turismo, imobiliário, serviços, automóvel e nas empresas exportadoras. Terceiro, mesmo com uma forte recuperação da economia em 2021, o PIB desse ano seria igual ao de 2019, implicando assim que esta crise nos fará perder, pelo menos, três anos de crescimento económico. Quarto, uma crise desta dimensão deixará marcas nas contas pública e será necessário ter alguma consolidação orçamental a partir de 2021.
Volto também a repetir algo que tenho dito frequentemente desde que esta crise começou. Existem três perguntas fundamentais:
1. Qual o impacto estrutural na economia: ou seja, qual é a perda de capital, capacidade instalada e emprego, isto é, qual a quebra do PIB potencial (sendo que esse impacto depende sobretudo da duração das medidas de confinamento e da existência ou não de uma segunda vaga no final deste ano ou início do próximo)?
2. Como vai o Estado Português financiar um aumento de 15 a 20 p.p. do PIB na dívida pública?
Que impacto vai ter a quebra do PIB potencial nas contas públicas, ou seja, até que ponto o défice estrutural se vai agravar?
3. Quando se olha para os números mais detalhado do FMI, conseguimos ter um conjunto adicional de perspetivas sobre estas três questões.
Comecemos pela parte estrutural da economia. O FMI prevê uma quebra do PIB potencial em 2020 de 3.5%. Trata-se da maior queda do PIB potencial desde 1995, conforme é visível no gráfico abaixo.

É verdade que o FMI prevê que em 2021 o PIB potencial recupere 2%. Mas isso significa que, em termos acumulados, os anos 2020-2021 têm uma quebra do PIB de 1.6%. Para se ter uma ideia do que os 3.5% e os 1.6% de quebra representam, considere-se estes números. Entre 2008 e 2014, o PIB potencial caiu 2.7%. Entre 2011 e 2014, o PIB potencial diminuiu 2%. Em nenhum ano o PIB caiu mais do que em 2012, uma quebra de 1.2%.
Ao cair 3.5%, o PIB potencial de Portugal passa de 195 mil milhões € (195 biliões – 195 bis) para 188 bis. Uma quebra de 7 bis em apenas um ano! Mesmo com a recuperação de 2021, o PIB potencial cai 3 bis (passa de 195 bis para 192 bis).
Se não tivesse havido a crise do Covid-19, as estimativas apontavam para um crescimento do PIB potencial em torno dos 2%/ano. Isso significa que em 2021 o PIB potencial seria de 202 bis. Esse valor compara com os 192 bis agora previstos pelo FMI para 2021. Não só no próximo ano teremos menos 3 bis de PIB potencial face a 2019, como teremos menos 10 bis face à estimativa de 2021 (antes desta crise).
Fica claro o nível de destruição económica que o vírus nos trouxe. E Portugal está particularmente vulnerável. Não apenas pelo elevado nível de endividamento (público, das empresas e das famílias, nomeadamente junto de entidades externas), mas sobretudo porque o crescimento e recuperação dos últimos anos assentou nos setores mais atingidos por esta crise, com o turismo, restauração e imobiliário à cabeça.
Olhemos depois para o financiamento da dívida pública. Nos números do FMI, a dívida pública sobe até aos 135% PIB. É uma subida de quase 20 p.p.. Refira-se que a maioria dos países têm subidas entre os 15 e os 20 p.p. Mas nem todos estão na mesma situação de partida.
Como fui repetindo aqui inúmeras vezes, países com níveis baixos de dívida pública estariam mais bem preparados para enfrentar uma crise futura. E como fui lembrando aqui inúmeras vezes, Portugal não fez uma consolidação orçamental estrutural e não se preocupou em demasia com a redução da dívida pública. Agora, se não houver instrumentos Europeus robustos e suficientemente fortes, estaremos, mais uma vez, entregues à nossa sorte, à incúria governativa que nos levou ao 3º resgate em 2011 e condenados a ter de viver novamente dificuldades financeiras.
A tabela abaixo mostra as diferentes posições em matéria de dívida pública. Como irão os mercados reagir a uma Grécia com 200% PIB de dívida pública, ou a uma Itália perto dos 160%? Ou Portugal quase nos 140%?

Fonte: dados do FMI

Daí que a resposta Europeia seja fundamental, como tenho dito neste último mês e meio. Mas quem não perceba que essa resposta tem de seguir as regras da zona Euro, ou sabe isso e não é sério ou, então, não sabe e acredita nessa ignorância.
A resposta do Conselho Europeu da passada quinta-feira é um primeiro passo, mas deixa muitos pontos em aberto. Que montantes vão ser adicionados aos 500 bis já decididos (entre o mecanismo de seguros de emprego, o fundo do BEI e o fundo do ESM – que ninguém vai usar, dadas as restrições e obrigações que impõe)? Como será feita a distribuição do montante adicional, entre subsídios e empréstimos? A Comissão Europeia vai lançar um empréstimo, mas como vão ser pagos os juros e como é feito o reembolso no final da maturidade (e já agora qual é a maturidade)? Que tipo de apoios serão usados (grandes obras públicas merecem bastantes reservas, dado o histórico de ineficiência em Portugal do investimento público)? Será preferível canalizar o dinheiro para as empresas, mas como evitar o “crony capitalismo”? Os setores a apoiar devem estar ligados a uma maior competitividade da economia, reduzindo o peso do turismo, imobiliário e serviços conexos? E o fundo de recuperação da economia quando estará disponível?
No entretanto, quem assegura o financiamento da dívida pública? O BCE tem um programa de compras de ativos que atinge um trilião (um bilião – isto é, um milhão de milhão), mas ainda assim as yields da dívida pública Portuguesa (e de outros) têm subido significativamente (passaram de 0.2% em fevereiro para perto de 1.5%).
E sobre o BCE, poderia fazer mais do que já fez? Pode sempre aumentar o montante do programa de compras. Por exemplo, Portugal deve precisar, sem contar com os Bilhetes do Tesouro, de emitir OT´s no valor de 40 a 50 mil milhões de euros até ao final do próximo ano. O montante para Portugal do programa do BCE cobrirá cerca de metade desse valor.
Mas poderia o BCE avançar ainda mais na sua atuação? Tenho visto muita gente a pedir a monetização dos défices (isto é, a emissão de moeda pelo BCE para financiar os défices públicos). Convém esclarecer do que falamos. Quando os governos precisam de emitir muita dívida pública para financiarem os seus défices, nem sempre os mercados financeiros absorvem esses títulos, e é necessário que o Banco Central os compre. O mecanismo segue os seguintes passos: o governo emite divida, os bancos comerciais compram (em mercado primário) e depois vendem ao Banco Central (em mercado secundário) e recebem um “IoU” (um documento de dívida). O programa de compra de ativos, que é designado por “quantitative easing”, não gera assim um aumento de moeda em circulação, não podendo assim, por via monetarista, gerar inflação.
Em teoria isto não altera a restrição orçamental do governo. Digo em teoria, porque o QE do BCE desde 2015 reduziu substancialmente o fardo orçamental dos países da zona Euro. Como tenho aqui escrito nos últimos anos, entre 2015 e 2019 os juros da dívida pública reduziram-se em cerca de 1.6% PIB e os dividendos e IRC do Banco de Portugal (porque o QE é feito pelo BCE, mas 90% são compras do Banco Central de cada país) representaram cerca de mais 0.4% do produto. Ou seja, cerca de 2/3 da consolidação orçamental nominal feita entre 2015 e 2019 resultou do programa do BCE.
Mas em todo o caso, o governo continua a ter essa dívida no seu balanço, e, portanto, continua a ter de no futuro cobrar impostos para a pagar (e no presente de pagar os juros).
Se a dívida no Banco Central for paga, como vimos, isso não cria moeda, não gera pressões inflacionistas e não representa um financiamento direto do défice (apenas um acesso ao financiamento mais fácil por parte do governo).
Mas se a dívida não for paga, isso implica uma perda no balanço do Banco Central que, para fazer face aos depósitos dos bancos comerciais (os tais “IoU” que estes receberam em troca da divida pública que entregaram), tem de emitir moeda. Aí sim, a moeda em circulação aumenta, trazendo tensões inflacionistas.
Outra hipótese é fazer recair esse default no setor privado, afetando as poupanças das famílias e das empresas, mantendo os bancos solventes. Ou então afetando os bancos, tornando-os insolventes e obrigando à sua nacionalização.
Portanto, no segundo ponto desta minha reflexão, sobre o financiamento do aumento da divida pública, a resposta Europeia será crítica. Mas mesmo com uma resposta Europeia forte e alargada, teremos ainda assim de fazer um caminho difícil. Os investidores vão exigir um programa credível e ambicioso de redução da dívida pública. E a nossa capacidade de corrigir os desequilíbrios da economia Portuguesa, tornando-a mais competitiva serão fundamentais.
O que nos leva ao terceiro ponto, até que ponto esta crise gera um novo desequilíbrio das contas públicas? O FMI prevê que o saldo estrutural (o saldo orçamental sem o efeito cíclico e sem as medidas pontuais) se agrave em 2020, para um défice estrutural de 4.6%, reduzindo-se para 1.4% em 2021.
Mas quando olhamos para as rubricas orçamentais, a receita fiscal e contributiva será este ano inferior à de 2019 em quase 7 bis. Sim, menos 7 mil milhões de euros! Mesmo com a recuperação de 2021, a receita fiscal e contributiva do próximo ano será ainda assim inferior à de 2019 em 2 bis. Só em 2022 é que a receita fiscal e contributiva atingirá o valor nominal de 2019.
Ora, em 2021, já sem a despesa “one-off” de resposta à crise (lay-offs, saúde, apoios, etc.), a despesa será mais 3 bis superior à de 2019. Ou seja, em 2021 teremos menos 2 bis de receita e mais 3 bis de despesa (e sem que o investimento público cresça, dado que foi de 4 bis em 2019 e será, nas contas do FMI, de 4.2 bis em 2021). Isso significa um défice de 15 bis em 2020 e de 4 bis em 2021, com a divida pública a passar de 250 bis para 270 bis.
Mas os números do FMI mostram ainda mais. A manter-se aquela projeção, em 2025, o défice nominal estaria ainda acima dos 1%. Como o FMI prevê a partir de 2020 um “hiato do produto” (isto é, a diferença entre o PIB nominal e o PIB potencial) positivo, isso significa que, nestas projeções, o défice estrutural manter-se-ia nos próximos anos próximo dos 2%.
Ora isso não poderá suceder. E, portanto, para responder à última questão, não é crível que uma crise desta dimensão não tenha impacto orçamental e não venha a ser necessário medidas de consolidação orçamental. Não creio que venham a ter a dimensão do passado. Dependerá muito da dimensão e do tipo de apoio Europeu que tivermos, do tempo que for dado para corrigir os desequilíbrios orçamentais e da confiança dos mercados no financiamento da dívida pública.
Muitas incógnitas, poucas certezas. Apenas que nos esperam tempos difíceis em todo o lado.

Artigo publicado originalmente no jornal ECO.