Intervenção de Pedro Passos Coelho no Instituto Universitário de Florença

14 de maio de 2015
PSD

‘Rumo a uma arquitetura europeia em que podemos confiar’

Florença, 8 de maio de 2015

 

«Minhas Senhoras e Meus Senhores,

Há setenta anos atrás terminou uma terrível guerra na Europa. Décadas de divisões e de ódios levaram a uma catástrofe humana que nunca deve ser esquecida. As lições foram rapidamente aprendidas. Foi sobre as ruínas de um continente devastado que os povos europeus começaram a trilhar o caminho da paz e da unidade.

A fim de viverem juntos em paz e prosperidade, os europeus decidiram construir uma casa comum. Aos poucos, quase todas as democracias europeias aderiram ao projeto. Nem todos os europeus que sonhavam ser parceiros neste grande projeto foram capazes de o fazer, pois estavam – quer a Leste, quer a Sul – sob o jugo de ditaduras. Mas, em seguida, nos anos setenta, começou uma grande onda de democratização.

Primeiro, o meu próprio país tornou-se finalmente numa verdadeira democracia; a Grécia e a Espanha seguiram-se rapidamente. Depois disso, o Muro de Berlim caiu e a Europa voltou a estar unida numa casa comum de liberdade e democracia. Foi neste ambiente de grande esperança e de unidade que decidimos criar o Euro. Esse foi um grande marco da nossa determinação de permanecer unidos. Este foi o caminho que seguimos.

Depois, veio a crise. Esta trouxe muita dor económica e social, particularmente em países como o meu, onde pouco trabalho tinha sido feito no sentido de uma sociedade mais competitiva e equitativa e a necessidade de ajustamento era maior. Mas a crise colocou também à prova a nossa determinação de permanecer unidos e de partilhar um destino comum.

Foi sob grande pressão que colocámos em prática uma série de medidas e dispositivos de emergência para responder à crise, e um doloroso processo de aprendizagem teve início. Nós não respondemos tão rapidamente quanto devíamos ter feito; não evitámos a frustração nem os altos custos da incerteza. Não evitámos as recriminações mútuas e os mal-entendidos. Mas no final fomos capazes de colocar a crise para trás das costas.

No entanto, este não é o momento para complacência. Pelo contrário. Este é o momento de avançar com determinação e uma visão comum. É o momento de fazer escolhas. Refiro-me a escolhas duradouras e viáveis. Até agora temos vivido sob uma estrutura assente em regras. Temos de passar a adoptar uma estrutura centrada em instituições.

Agora é hora de aprender todas as lições difíceis, enfrentar os nossos desafios e restabelecer a área do euro com alicerces mais fortes. Proponho, então, que agora entremos sem demora numa segunda fase da reforma da Zona Euro. Devemos, por isso, revisitar os nossos princípios fundadores. Temos de olhar mais uma vez para os fins comuns que fizeram do projeto europeu um objeto de admiração em todo o mundo.

A meu ver, no cerne do nosso projeto reside o ideal de convergência entre os nossos povos: a convergência na prosperidade e a convergência na liberdade. Isto é o que nos une a todos. Não nos podemos dar ao luxo de perder de vista esse propósito final. Tal como defendemos a igualdade de oportunidades nas nossas sociedades nacionais, temos de reivindicar também igualdade de oportunidades para que todos os povos europeus possam crescer e prosperar.

Isto é o que deve resultar da próxima fase da reforma europeia. Se falharmos, então assistiremos a crescentes forças de divisão e de conflito. Veremos a desilusão e a frustração. No final, muitos vão começar a perguntar-se se não estarão melhor fora da Europa, em vez de dentro.

A ascensão do populismo, do extremismo, de movimentos políticos antieuropeus, deve ser tomada como advertência para os riscos da fragmentação política na União Europeia. Devemos nós ignorar a frustração e a falta de confiança no futuro que tem sido partilhada por tantos em toda a Europa? Não creio que o devamos fazer.

Uma reforma da arquitetura da zona euro orientada para o futuro é, portanto, crucial para enfrentar estes desafios com sucesso. Precisamos de regras claras e de instituições funcionais. E precisamos de processos de tomada de decisão previsíveis, responsáveis e tempestivos.

Para a preparação do Conselho Europeu de Junho, irei enviar um documento com as minhas propostas de reforma ao Presidente da Comissão Europeia, ao Presidente do Conselho Europeu e ao Presidente do Banco Central Europeu.

Permitam-me agora que resuma as reformas que defendo para uma discussão a nível europeu.

A segunda fase da reforma europeia que proponho gira em torno de uma integração mais inteligente e mais profunda em áreas-chave. Reflete a especificidade inegável da zona euro no contexto mais amplo da União Europeia. A promoção da prosperidade equilibrada numa união monetária em que uma política monetária única se aplica a países com caminhos de crescimento muito divergentes, e convivendo com a soberania fiscal nacional, exige reformas específicas da zona do euro. No entanto, dada a estreita relação entre a criação do euro e o aprofundamento do mercado único, estas propostas devem ser vistas por todos os Estados-membros, tanto dentro como fora da zona euro, como uma oportunidade e um apelo à responsabilidade comum.

- Em primeiro lugar, precisamos de um quadro mais coerente para as políticas estruturais. Isso envolve a reorientação e simplificação do Semestre Europeu. Devemos tornar o Semestre Europeu mais operacional e eficaz. Nomeadamente, deve propor indicadores cimeiros. E deve fazer a cada país recomendações específicas mais focadas num número limitado de prioridades políticas e mais centrada em políticas com repercussões positivas para todos os Estados Membros. A implementação das Recomendações deve ser suportada por um nível muito mais elevado de compromisso político, garantindo assim um processo muito mais ágil e um impacto mais imediato sobre as escolhas políticas nacionais.

Em paralelo, haveria uma grande melhoria se o Semestre Europeu refletisse especificidades e recomendações da zona euro - numa palavra, se gerasse uma Recomendação Europeia.

Além disso, temos de ter um olhar mais profundo sobre a coordenação fiscal. Sabemos que a coordenação fiscal é uma exigência para evitar repercussões negativas de más decisões nacionais. Mas, no mesmo sentido, devemos concluir que a coordenação fiscal também é necessária para promover repercussões positivas. Porém, a coordenação fiscal genuína implica que devemos levar em conta, não só o enquadramento fiscal de cada país, mas também a orientação orçamental global da União, e em particular da zona euro.

Permitam-me sublinhar que este objectivo de uma posição conjunta para a política orçamental não exige uma união orçamental. Está sobretudo virado para a determinação da situação orçamental da União como um todo - e que pode ser razoavelmente realizada através de orçamentos nacionais. No entanto, sem tomar a situação orçamental do todo em conta, podemo-nos deparar com situações orçamentais nacionais adequadas, mas com uma posição fiscal global desadequada. Este é um exemplo de como o todo pode ser diferente da soma agregada das suas partes. E aponta para uma discussão adicional sobre a questão da flexibilidade e resiliência na política orçamental - ou seja, orientações sobre a postura da política orçamental global da União Europeia e da zona euro em particular.

- Em segundo lugar, temos de criar uma União Financeira para o Crescimento e Estabilidade. Desde 2012 que tenho vindo a defender uma União Bancária completa sem a qual, parece-me, a União Monetária pode vir a ser destruída por uma fragmentação financeira. Desde então, temos dado passos importantes no sentido de uma União Bancária na Europa. Mas devo insistir que ainda não temos uma União Bancária completa, que nos pode dar mais estabilidade, mais crescimento, menos resgates bancários, e reações menos perversas entre Estados soberanos e o sector financeiro.

Um sistema bancário verdadeiramente europeu e integrado é a única maneira de aumentar a confiança no Euro, independentemente das decisões políticas individuais. Para isso, devemos urgentemente avançar com um sistema comum de garantia de depósitos e com um suporte financeiro cofinanciado que sustente tanto a garantia de depósitos comum quanto o fundo único de resolução.

Mas a União Financeira é mais do que isso. Os nossos mercados financeiros precisam ser alargado e aprofundados com instrumentos que permitam aos investidores investir fundos na Europa, em títulos emitidos por instituições europeias financeiras e não-financeiras. O objetivo é dar às empresas europeias, especialmente às pequenas e médias empresas, o acesso a formas de financiamento diferentes e mais baratas, com o fim de aumentar o investimento e criar mais emprego. O aumento de escala, bem como a disponibilidade de novos instrumentos, seria um grande passo em frente na criação de uma igualdade de condições para as empresas europeias, independentemente da sua localização geográfica.

Para isso temos de fazer progressos visíveis na União do Mercado de Capitais.

- Em terceiro lugar, e este é o meu ponto principal, para promover a convergência precisamos de um quadro orçamental e institucional em que possamos confiar. Precisamos de um Fundo Monetário Europeu.

Em minha opinião, esta nova instituição será central para uma arquitetura da zona euro reformada e orientada para o futuro. É uma necessidade ditada pelo senso comum e por um sentido económico e político. Se realmente queremos coordenar a política económica e monetária, então o braço monetário da zona euro deve encontrar uma verdadeira contraparte no lado económico. Caso contrário, estaremos a criar um novo desequilíbrio no seio da União Monetária. Por outras palavras, atualmente a ação do braço monetário não é igualada por ação equivalente e coordenada a partir do braço económico. Isso mina os efeitos positivos esperados de ambos. Esta é uma grave lacuna no nosso concerto institucional e temos de a enfrentar rapidamente. O Fundo Monetário Europeu é a maneira de fazê-lo.

Deixem-me começar por dizer muito claramente que o Fundo Monetário Europeu, tal como eu o concebo, não introduz transferências unívocas e permanentes entre os países. Nem remove a necessidade de disciplina orçamental a nível nacional. Não pode haver dúvidas sobre qualquer uma destas questões. Em vez disso, o Fundo seria um instrumento de responsabilidade comum, de maior credibilidade e solidez económica.

Em minha opinião, o FMI deve ter três funções principais. A nossa experiência nos últimos cinco anos diz-nos que precisamos de um mecanismo de ajustamento financeiro permanente para prestar apoio técnico e financeiro aos Estados-Membros confrontados com situações insustentáveis. Este mecanismo deve ser mais autónomo dos governos nacionais em termos de tomada de decisão. E ele deve ser dotado das capacidades técnica e financeira para agir rapidamente e de maneira informada.

Além disso, permitiria a uma única instituição supervisionar e monitorizar o progresso de programas de ajustamento, o que significa que o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional seriam dispensados da missão que tiveram até agora. Isso representaria um amadurecimento da abordagem europeia às crises, tais como aquelas que tivemos no passado. E seria retirar o Banco Central Europeu da posição desconfortável e juridicamente contestada de instituição de acompanhamento a este tipo de programas de assistência nacional. Na prática, a criação do Fundo requer a integração do Mecanismo Europeu de Estabilidade.

Mas o Fundo Monetário Europeu vai além disso. O FME deve ser dotado de capacidade financeira suficiente para financiar as reformas nacionais estruturais com repercussões positivas para a zona do euro como um todo, bem como projetos de investimento com foco na modernização da infraestrutura da qual o mercado único depende. Com esta vocação de investimento, e trabalhando com o Banco Europeu de Investimento, o FME seria uma instituição importante para promover o reequilíbrio interno na zona euro e, portanto, para uma posição macroeconómica mais simétrica.

Finalmente, e no longo prazo, o FME também teria de desempenhar funções limitadas de absorção de choques, a fim de melhorar a capacidade de resistência da zona do euro como um todo, evitar o contágio em toda a União e reduzir os custos económicos e sociais associados aos ajustamentos.

Todos concordam que a zona euro carece de um mecanismo económico inteligente e permanente que cumpre um papel de estabilização face aos choques específicos ou a efeitos assimétricos de choques comuns. Embora alguns desses choques resultam de más políticas nacionais, outros não. A função de absorção de choque permitiria algum tipo de partilha de riscos para ajudar a reduzir custos de ajustamento para os países afectados, limitar a necessidade de recorrer à ajuda financeira e evitar brechas na coesão social. Esta função oderia assumir a forma geral de um mecanismo do tipo de seguro entre os países da zona do euro e exigiria um maior grau de harmonização entre as políticas económicas e as instituições dos Estados-Membros participantes. O exemplo mais evidente de uma tal função seria um complemento europeu, ou substituto parcial, ao subsídio de desemprego nacional, ou até europeização parcial das políticas ativas no mercado de trabalho.

Assim, o aprofundamento da União Económica e Monetária exigirá algum tipo de capacidade orçamental. Esta necessidade tornou-se evidente durante a crise. A capacidade orçamental limitada à zona euro justifica-se pelo facto de os países da zona euro terem menos instrumentos para lidar com ajustamentos necessários. Mas também porque fazer a maior parte dos ajustamentos depender exclusivamente da desvalorização interna mina de convergência económica real. Não é aceitável que a reação a choques específicos de cada país, e o legado que isso lhes deixa, acabe por atrasar o processo de convergência por muitos anos ou mesmo décadas – para não dizer que pode mesmo invertê-lo permanentemente. Devemos ter em mente que uma convergência mais profunda é do interesse de todos na zona euro porque diminui desde logo consideravelmente o risco de crises da dívida soberana e da necessidade de assistência financeira.

Então, como poderá essa capacidade fiscal ser financiada? Em minha opinião, não da mesma forma como temos vindo a financiar programas europeus até agora. Quero dizer, não através da partilha dos recursos financeiros nacionais e das transferências nacionais para um orçamento comunitário. Em vez disso, essa capacidade orçamental deverá ser financiada por recursos próprios, de acordo, naturalmente, com regras e limites previamente definidos.

Por que devemos ir para os recursos próprios? Se continuarmos a vincular o financiamento europeu aos recursos financeiros nacionais, não seremos capazes de superar o impasse político que tivemos até agora. Vamos continuar a transformar cada intervenção europeia num “jogo de soma zero”. Vamos continuar a transformar cada ação financeira da zona do euro numa forma de redistribuição de recursos de alguns Estados para outros Estados. A abordagem nacional de transferências de recursos gera amargura política entre Estados-Membros e, em última análise, atrapalha a nossa capacidade de agir de forma eficaz.

Já aqui disse antes que uma União Monetária que funcione bem requer uma verdadeira contraparte de política económica que seja interlocutora do BCE. Essa instância de decisão deve ser responsável pela política económica na zona euro. Isto significa que deve ter autoridade política suficiente e deve prestar contas a todas as partes envolvidas.

A Presidência do Eurogrupo é o lugar óbvio onde se pode colocar uma tal autoridade. Mas não na sua forma atual.

Neste contexto, precisaríamos que o Presidente do Eurogrupo se tornasse permanente. Ao se aumentar a responsabilidade desta instância - o incluiria, entre outras coisas, a chefia do Fundo Monetário Europeu -, torna-se mais difícil acumular com as funções de ministro das finanças de um Estado-Membro. E, mais importante que isso, não podemos esquecer o fator da legitimidade e responsabilidade.

Assim, várias opções podem ser consideradas. Uma delas seria uma estrutura dirigida por um presidente permanente do Eurogrupo nomeado pelo Conselho Europeu e submetido a uma audição pelo Parlamento Europeu.

Outra forma seria ter uma vez mais uma estrutura permanente dirigida por um presidente do Eurogrupo, nomeado pelo Conselho Europeu, mas nesta segunda opção ele seria ao mesmo tempo Vice-Presidente da Comissão Europeia. E estaria também sujeito a uma audição pelo Parlamento Europeu.

Outras opções podem ser consideradas, mas, seja qual for a opção, terá de ser adequada à finalidade de melhorar a coordenação entre as políticas económicas e orçamentais, aumentando a consistência na monitorização dos orçamentos nacionais e programas de reforma, juntamente com o aprofundamento da legitimidade do cargo. E tudo isso poderia ser feito no quadro dos Tratados existentes.

Minha Senhoras e Meus Senhores,

Estou plenamente consciente de que as propostas que ora faço são bastante ambiciosas. Mas são viáveis e podem ser objecto de um novo consenso europeu. Obviamente, podem ser melhoradas, mas resolvem problemas reais e necessidades que não nos podemos dar ao luxo de ignorar.

É minha convicção profunda de que temos uma oportunidade de agir de forma decisiva agora antes que seja tarde demais. É em momentos de recuperação económica que devemos reformar o edifício institucional da zona euro e aproximá-lo das aspirações dos nossos cidadãos. E não me refiro apenas a cidadãos portugueses ou cidadãos do Sul da Europa. Refiro-me aos homens e mulheres em toda a Europa que olham para o futuro com a expectativa legítima de que nunca mais deveremos passar pelas mesmas provações novamente.

Os riscos de desintegração económica e financeira, de colapso social e de fragmentação política são todos reais. Não devemos estar à espera que outra emergência nos atinja para lidar com eles.

Digo-vos isso como o primeiro-ministro de Portugal, um país que nos últimos quatro anos tem sido um parceiro europeu credível e confiável. Com grandes sacrifícios, Portugal já ganhou essa credibilidade. Sabiamos que novos muros políticos entre o Norte e o Sul, ou entre Ocidente e Leste, seriam nocivos para a Europa. Nós jogámos o nosso papel na construção de pontes sempre que as forças políticas e sociais poderiam estar a separar os países europeus. Fizemo-lo com palavras e ações, tanto em casa quanto a nível europeu.

Desde 2011 que temos vivido plenamente dentro do princípio da responsabilidade nacional. E desde então temos vindo a lutar a nível europeu por essa agenda de reformas em nome da responsabilidade comum. É tempo para que estas duas formas de responsabilidade se encontrem de maneira concreta e significativa.

Mas eu devo sublinhar que, no final do dia, o sucesso do projeto europeu vai sempre depender da assunção da responsabilidade nacional: responsabilidade no respeito pelas regras comuns e responsabilidade a manter a nossa própria casa arrumada. Se perdermos isto de vista, nenhuma proposta de reforma, nenhuma melhoria institucional será capaz de dar mais força à nossa União.

Isto não é um apelo à solidariedade. É uma chamada à responsabilidade comum. É uma chamada à determinação e à sabedoria para enfrentar os desafios que nos afetam a todos, sem exceção. E digo isso porque realmente acredito que as pessoas em toda a Europa compreendem que devemos permanecer unidos.

Não a qualquer preço, é claro, mas vivendo numa casa comum em cuja arquitetura todos possamos confiar.

 

Obrigado».