José Cancela Moura: O milagre

24 de junho de 2020
PSD

A regressão da situação epidemiológica na Área Metropolitana de Lisboa forçou o Governo a reconhecer que, afinal, não está tudo bem e a tomar medidas musculadas – parece que Salvador Malheiro tinha razão – para tentar conter o quadro de contágio da Covid-19. Na verdade, entre 7 e 21 de junho, a região de Lisboa e Vale do Tejo registou 83,1% dos novos contágios, correspondente a um rácio de 101 novos casos, por 100 mil habitantes. Preocupante.

Não sabemos a origem do descontrolo da doença nos concelhos de Lisboa, Sintra Amadora, Loures e Odivelas. Mas sabemos, todavia, que os sinais negativos e o comportamento errático e contraditório de altas figuras públicas, a começar pelo Presidente da República e pelo Primeiro-Ministro, contribuíram e promoveram a desinformação, o relaxe e até a irresponsabilidade na conduta dos cidadãos.

No dia em que António Costa participou num espetáculo, no primeiro dia de desconfinamento, a réstia de autoridade moral que o Primeiro-Ministro ostentava caiu por terra. Ninguém percebeu por que razão os centros comerciais ou os estádios de futebol não podiam receber clientes ou adeptos, mas o Campo Pequeno reabria as portas para um evento público, com milhares de pessoas.

Esta segunda-feira, o Primeiro-Ministro anunciou um conjunto de medidas restritivas para a Área Metropolitana de Lisboa, nomeadamente o limite de dez pessoas para ajuntamentos, com exceção do mesmo agregado familiar. Curiosa e estranhamente, promoveu um ajuntamento de 11 pessoas, para fazer esta comunicação.

Entre coimas e redução de horários comerciais, o quadro sancionatório também estabelece que, quem violar as restrições pode incorrer num crime de desobediência, punível com um ano de prisão. Ora, quem agora impõe estas regras de contingência, é precisamente quem antes deu sinais completamente errados e contraproducentes, ao autorizar as comemorações da CGTP, 1.º de Maio ou as manifestações contra o racismo, que juntaram milhares de pessoas.

Agora os resultados estão à vista. A região de Lisboa e Vale do Tejo tem uma taxa de contágio muito acima da média do País, o número de casos não para de subir há várias semanas e só no último mês, registaram-se, em média, 250 novos casos por dia.

O problema das cadeias de transmissão preocupantes nas 19 freguesias da Grande Lisboa coincide com o relaxamento das autoridades perante uma doença que está a regredir o desconfinamento.

Para o Primeiro-Ministro, parece que o princípio é desconfinar à vontade e restringir à moda antiga. Foi António Costa que prometeu que não hesitaria em dar um passo atrás, caso fosse necessário, ainda que ele próprio parece ter dado vários passos em direção ao precipício. Mesmo este otimista irritante acabará por reconhecer que, na realidade, os números estão piores e que a situação se agravou.

Os ajuntamentos em Braga, Carcavelos, nas praias da Arrábida e as festas ilegais, em Lagos, podem delapidar, em dias ou em episódios casuais, os ganhos do combate coletivo à doença para que todos contribuímos, durante um mês e meio de Estado de Emergência.

Também ainda ninguém conseguiu explicar a candidatura de Lisboa para acolher, em agosto, a fase final da Liga dos Campeões, decisão tomada pelo Comité Executivo da UEFA. “Quanto maior for o número de visitantes para o nosso país melhor”, afirmou a diretora-geral da Saúde. Graças Freitas é uma séria candidata ao Prémio IgNobel, porque humor não lhe falta. Se bem que melhor fosse que não brincasse com coisas sérias.

E ainda vem aí a Festa do Avante que não é apelidada de festival, mas de iniciativa política, uma verdadeira prova de fogo, onde se indicia que o Governo e o PR, em pleno Estado de Calamidade, se poderão contradizer a si próprios e fazer tábua rasa do diploma que proíbe a realização, em recintos cobertos ou ao ar livre, de festivais e espetáculos de natureza análoga, até 30 de setembro.

As massas replicam os comportamentos dos seus decisores. Uma lei tem uma função preventiva e dissuasora. Acontece que na psicologia das multidões, as pessoas seguem sempre os exemplos das elites. É básico. Porque o exemplo vem de cima e começa nas lideranças.

Com a taxa de ocupação das unidades de cuidados intensivos a disparar nos hospitais da Grande Lisboa e quando, pelo menos, 10 países europeus proibiram ou restringiram a entrada de portugueses, parece que afinal o milagre pandémico português está a dissipar-se e corre o risco de se tornar num fiasco epidemiológico.

A vida das pessoas e a saúde pública tornam inapropriado qualquer nota de humor, mas a epidemia da Covid-19 ameaça tornar este Governo uma autêntica anedota.

Artigo publicado originalmente no Povo Livre